os seres bizarros que ocupam a base da escala, foi porque os próprios Espíritos o puseram em uso e, aliás, nossa própria língua não tem termo melhor para oferecer. Essa designação os deprecia um pouco; mas chamá-los de homens seria exagero: com efeito, são Espíritos votados à animalidade, talvez por longo tempo, talvez para sempre; porque nem todos os Espíritos estão de acordo sobre esse ponto, e a solução do problema parece pertencer a mundos mais elevados do que Júpiter, mas, qualquer que seja o seu futuro, não há com que se enganar quanto ao seu passado. Esses Espíritos, antes de irem para lá, emigraram sucessivamente em nossos baixos mundos, do corpo de um animal para o de outro, em uma escala de aperfeiçoamento perfeitamente graduada. O estudo atento dos nossos animais terrestres, seus costumes, seus caracteres individuais, sua ferocidade longe do homem, e sua domesticação lenta, mas sempre possível, tudo isso atesta suficientemente a realidade dessa ascensão animal.
À espera das cartas prometidas, que facilitarão o estudo de todo o planeta, podemos, pelas descrições feitas pelos Espíritos, fazer-nos uma ideia de sua grande cidade, da cidade por excelência, desse foco de luz e de atividade que concordam em designar sob o nome, estranhamente latino, de Julnius.
"Sobre o maior dos nossos continentes, disse Palissy, em um vale com cerca de quatro mil e setecentos quilômetros de largura, para contar como vós, um rio magnífico descendo das montanhas do norte, e aumentado por uma multidão de torrentes e de ribeirões, forma, em seu percurso, sete a oito lagos, dos quais o menor mereceria, entre vós, o nome de mar. Foi sobre as margens do maior desses lagos, batizado por nós com o nome de a “Pérola”, que nossos ancestrais lançaram os primeiros fundamentos de Julnius. Essa cidade primitiva ainda existe venerada e conservada como uma preciosa relíquia. Sua arquitetura difere muito da terrena. Explicar-te-ei tudo isso a seu tempo: saiba apenas que a cidade moderna está a uns cem metros mais abaixo da antiga. O lago, encaixado nas altas montanhas, se derrama no vale por oito cataratas enormes, que formam igualmente correntes isoladas e dispersas em todos os sentidos. Com a ajuda dessas correntes, nós mesmos cavamos, na planície, uma multidão de riachos, de canais e de tanques, não reservando a terra firme senão para nossas casas e nossos jardins. Disso resultou uma espécie de cidade anfíbia, como vossa Veneza, e da qual não se poderia dizer, à primeira vista, se está edificada sobre a terra ou sobre a água. Não te digo nada hoje de quatro edifícios sagrados, construídos sobre a própria vertente das cataratas, de sorte que a água jorra em abundância de seus pórticos: aí estão obras que vos pareceriam inacreditáveis pela grandeza e audácia.
"É a cidade fundada no solo que descrevo aqui, a cidade de alguma sorte material, a das ocupações planetárias, a que chamamos, enfim, a Cidade baixa. Ela tem suas ruas, ou antes, seus caminhos, traçados para o serviço interior; tem suas praças públicas, seus pórticos e suas pontes lançadas sobre os canais para a passagem dos servidores. Mas a cidade inteligente, a cidade espiritual, a verdadeira Julnius, enfim, não é no solo jupteriano que é preciso procurá-la, é no ar”.
"Ao corpo material de nossos animais, incapazes de voarem, é preciso de terra firme; mas o que nosso corpo fluídico e luminoso exige, é de residências aéreas como ele próprio, quase impalpável e móvel ao gosto de nosso capricho. Nossa habilidade resolveu esse problema, com a ajuda do tempo e das condições privilegiadas que o Grande Arquiteto nos havia dado. Compreenda bem que essa conquista dos ares era indispensável a Espíritos como os nossos. Nosso dia é de cinco horas, e nossa noite de cinco horas igualmente; mas tudo é relativo, e para seres prontos para pensarem e agirem como nós o somos, para Espíritos que se compreendem pela linguagem dos olhos e que sabem se comunicar, magneticamente, à distância, nosso dia de cinco horas igualaria já em atividade uma de vossas semanas. Era ainda muito pouco, na nossa opinião, e a imobilidade da morada, o ponto fixo da sede era um entrave para todas as nossas grandes obras. Hoje, pelo deslocamento fácil dessas moradas de pássaros, pela possibilidade de transportar, nós e os outros, em tal lugar do planeta e tal hora do dia que nos aprazasse, nossa existência é pelo menos dobrada, e com ela tudo o que pode criar de útil e de grande”.
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Exemplo de uma residência em Júpiter |
“É preciso, todavia, deles excetuar certos animais munidos de asas e reservados para o serviço aéreo, e para os trabalhos que exigiriam, entre nós, o emprego de madeiramentos. São uma transformação da ave, como os animais descritos mais acima são uma transformação dos quadrúpedes”.
"Nada falta a essas casas flutuantes, nem mesmo o encanto das plantas e das flores. Falo de uma vegetação sem exemplo entre vós, de plantas, de arbustos mesmo destinados, pela natureza de seus órgãos, a respirar, a se alimentar, a viver e a se reproduzir no ar”.
"Nós temos” - disse o mesmo Espírito - “dessas moitas de flores enormes, das quais não poderíeis imaginar nem as formas nem as nuanças, e de uma leveza de tecido que as torna quase transparentes. Balançando no ar, onde longas folhas as sustem, e armadas de gavinhas semelhantes às da videira, se reúnem em nuvens de mil cores ou se dispersam ao sabor do vento e preparam encantador espetáculo aos visitantes da cidade baixa... Imagine a graça dessas jangadas de plantas, desses jardins flutuantes que nossa vontade pode fazer e desfazer e que duram, às vezes, toda uma estação! Longas fiadas de cipó de ramos floridos se destacam das alturas e pendem até a terra, pencas enormes se agitam exalando seus perfumes e suas pétalas que se desfolham... Os Espíritos que atravessam o ar aí se detêm na passagem: é um lugar de repouso e de reencontro, e, querendo-se, um meio de transporte para amenizar a viagem, sem fadiga e em companhia."
Outro Espírito estava sentado sobre uma dessas flores no momento em que eu o evoquei.
"Nesse momento”, - disse-me ele – “é noite em Julnius, estou sentado à parte sobre uma dessas flores aéreas que não desabrocham aqui senão à claridade de nossas luas. Sob meus pés toda cidade baixa dorme; mas sobre minha cabeça e ao meu redor, a perder de vista, não há senão movimento e alegria no espaço. Dormimos pouco: nossa alma é muito desligada para que as necessidades do corpo sejam tirânicas; e a noite é mais feita para nossos servidores do que para nós mesmos. É a hora das visitas e das longas conversas, de visitantes solitários, de fantasias, da música. Não vejo senão moradas aéreas resplandecentes de luzes ou jangadas de folhas e de flores carregadas de bandos alegres. A primeira de nossas ruas clareia toda a cidade baixa: é uma doce luz comparável a de vosso luar; mas, do lado do lago, a segunda se eleva, e esta tem reflexos esverdeados que dão a todo o rio o aspecto de um grande gramado...
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Mozart |
“É sobre a margem direita desse rio, cuja água”, - disse o Espírito – “te ofereceria a consistência de um leve vapor, que está construída a casa de Mozart, que Palissy consentiu fazer-me desenhar sobre cobre. Não dou aqui senão a fachada sul. A grande entrada está à esquerda, sobre a planície; à direita está o rio, ao norte e ao sul estão os jardins”. - Perguntei a Mozart quem eram os seus vizinhos. - "Mais alto, disse, e mais baixo, há dois Espíritos que tu não conheces; mas à esquerda, não estou separado senão por uma grande campina do jardim de Cervantes.
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Miguel de Cervantes |
A casa tem quatro faces como as nossas, do que seria errado, todavia, fazer uma regra geral. Ela está construída com pedra que os animais tiram das pedreiras do norte, é das quais o Espírito compara a cor a esses tons esverdeados que toma, frequentemente, o azul do céu no momento em que o sol se põe. Quanto à sua duração pode-se fazer uma ideia por esta observação de Palissy, que ela derreteria sob nossos dedos humanos tão rapidamente quanto um floco de neve: ainda está aí uma das matérias mais resistentes do planeta! Sobre essa parede os Espíritos esculpiram ou incrustaram os estranhos arabescos. São ornamentos escavados nas pedras e coloridos em seguida, ou incrustações limitadas à solidez da pedra verde, por um procedimento que está muito em voga agora, e que conserva nos vegetais toda a graça de seus contornos, toda a finura de seus tecidos, toda a riqueza de seu colorido.
"Uma descoberta - acrescentou o Espírito - que fareis algum dia e que mudará entre vós muitas coisas."
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Morada de Mozart |
A grande janela da direita apresenta um exemplo de gênero de ornamentação, uma de suas bordas não é outra coisa senão um caniço enorme do qual se conservaram as folhas. Ocorre o mesmo com o coroamento da janela principal, que apresenta a forma de claves de sol: são plantas sarmentosas enlaçadas e petrificadas. E por esse procedimento que eles obtêm a maioria dos coroamentos de edifícios, de grades, de balaústres, etc. Frequentemente mesmo, a planta é colocada na parede, com suas raízes, em condições de crescer livremente. Ela cresce, se desenvolve; suas folhas desabrocham ao acaso, e o artista não a congela no lugar senão quando adquiriu todo o desenvolvimento desejado para a ornamentação do edifício: a casa de Palissy é quase inteiramente decorada desse modo.
Destinada primeiro unicamente aos móveis, depois às molduras de portas e de janelas, esse gênero de ornamento se aperfeiçoou pouco a pouco e acabou por invadir toda a arquitetura. Hoje, não são apenas a flor e o arbusto que se petrificam no estado, mas a própria árvore da raiz ao topo; e os palácios, como os edifícios sagrados quase nada mais têm de outras colônias.
Uma petrificação da mesma natureza serve também para a decoração das janelas. De flores ou de folhas muito amplas, são habilmente despojadas de sua parte carnuda: não resta mais do que uma rede de fibras, tão fina quanto a mais fina musselina. E cristalizada, e dessas folhas unidas com arte, constrói-se toda uma janela, que não deixa filtrar, para o interior, senão uma luz muito doce: ou bem as reveste com uma espécie de vidro líquido e colorido com todas as nuanças, que se endurece no ar e que transforma a folha em uma espécie de vidraça. Do conjunto dessas folhas resultam, para janelas, encantadores bosquezinhos transparentes e luminosos.
O leitor deve ter compreendido, depois de todo exposto, que a casa do continente não deve ser para o Espírito senão uma espécie de pequena casa de passagem. A cidade baixa quase não é frequentada, senão por Espíritos de segunda ordem, encarregados dos interesses planetários, da agricultura, por exemplo, ou das trocas e da boa ordem a manter entre os servidores. Também todas as casas que repousam sobre o solo, geralmente, não têm senão um térreo e um andar: um destinado aos Espíritos que agem sob a direção do senhor, e acessível aos animais; o outro, reservado só ao Espírito, que nele passa, apenas, breves períodos.
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Zoroastro |
É isso que explica por que vemos, nas várias casas de Júpiter, nesta, por exemplo, e na de Zoroastro, uma escada e mesmo uma rampa. Aquele que rasa a água como uma andorinha, e que pode correr sobre as hastes de trigo sem curvá-las, dispensa muito bem escada e rampa para entrar em sua casa; mas os Espíritos inferiores não têm o voo tão fácil: não se elevam senão pela agitação, e a rampa não lhes é sempre inútil. Enfim, a escada é absoluta necessidade para os animais serviçais, que não caminham senão como nós. Estes últimos têm também seus compartimentos, muito elegantes, de resto, que fazem parte de todas as grandes habitações; mas suas funções os chamam, constantemente, à casa do senhor: é preciso facilitar-lhes a entrada e o percurso interior. Daí essas construções bizarras, que, pela base, assemelham-se ainda aos nossos edifícios terrestres, e que deles diferem absolutamente pelo vértice.
Este se distingue, sobretudo, por uma originalidade que seríamos incapazes de imitar. É uma espécie de flecha aérea que se balança sobre o alto do edifício, acima da grande janela de seu original coroamento. Esse frágil escaler, fácil de deslocar e, todavia, destinado, no pensamento do artista, a não deixar o lugar que lhe foi assinalado, porque sem repousar em nada sobre o cume, completa, no entanto, a decoração, e lamento que a dimensão da prancha não haja permitido que nela encontrasse lugar. Quanto à morada de Mozart não tenho aqui senão que contatar-lhe a existência: os limites desse artigo não me permitem estender-me sobre esse assunto.
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Clave de Sol |
Não terminaria, todavia, sem me explicar, de passagem, sobre o gênero de ornamentos que o grande artista escolheu para a sua moradia. É fácil neles reconhecer a lembrança de nossa música terrestre: a clave de sol ai está frequentemente repetida, e, coisa bizarra, jamais a clave de fá!. Na decoração do térreo encontramos um arco de violino, uma espécie de grande alaúde ou de bandolim, uma lira e toda uma pauta musical. Mais alto, é uma grande janela que lembra, vagamente, a forma de um órgão; os outros têm aparência de grandes notas, e notas menores são abundantes por sobre toda a fachada.
Seria erro de isso concluir que a música de Júpiter seja comparável à nossa, e que se conta pelos mesmos sinais: Mozart explicou-se sobre ela de modo a não deixar dúvidas a esse respeito; mas os Espíritos lembram, de bom grado, na decoração de suas casas, a missão terrestre que lhes mereceu a encarnação em Júpiter e que resume melhor o caráter de sua inteligência. Assim, na casa de Zoroastro são os astros e a chama que fazem todos os detalhes da decoração.
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Torre Saint Jaques |
Há mais, parece que esse simbolismo tem suas regras e seus segredos. Todos esses ornamentos não estão dispostos ao acaso, têm sua ordem lógica e sua significação precisa; mas é uma arte que os Espíritos de Júpiter renunciam em nos fazer compreender, pelo menos até este dia, e sobre a qual não se explicam de bom grado. Nossos velhos arquitetos empregaram também o simbolismo na decoração de suas catedrais; e a torre de Saint-Jacques não é nada menos que um poema hermético, se se crê na tradição. Nada há, pois, para nos espantar na estranheza e na decoração arquitetônica em Júpiter; se ela contradiz nossas ideias quanto à arte humana, é que há, com efeito, todo um abismo entre uma arquitetura que vive e que fala e uma alvenaria, como a nossa, que nada prova. Nisso, como em toda outra coisa, a prudência nos proíbe esse erro do relativo que quer tudo conduzir às proporções e aos hábitos do homem terrestre. Se os habitantes de Júpiter estivessem alojados como nós, se comessem, vivessem, dormissem e andassem como nós, não haveria grande proveito em subir para lá. É bem porque seu planeta difere absolutamente do nosso que desejamos conhecê-lo, e sonhá-lo como nossa futura morada!
De minha parte, não perderia o meu tempo e estaria bem feliz por terem os Espíritos me escolhido para seu intérprete, se seus desenhos e suas descrições inspirarem, a uma única pessoa, o desejo de subir mais rápido para Julnius, e a coragem de tudo fazer para isso conseguir.
VICTORIEN SARDOU.
O autor dessa interessante descrição é um desses adeptos fervorosos e esclarecidos que não temem confessar francamente suas crenças, e se coloca acima da critica de pessoas que não creem em nada daquilo que sai do círculo de suas ideias. Ligar seu nome a uma doutrina nova, desafiando os sarcasmos, é uma coragem que não é dada a todo mundo, e felicitamos o senhor V. Sardou por tê-la. Seu trabalho revela o escritor distinto que, embora jovem ainda, já conquistou um lugar honroso na literatura, e une ao talento de escrever, os profundos conhecimentos de sábio; nova prova que o Espiritismo não recruta entre os tolos e os ignorantes. Fazemos votos para que o senhor Sardou complete, o mais rápido possível, seu trabalho tão felizmente começado. Se os astrônomos nos revelam, por suas sábias pesquisas, o mecanismo do Universo, os Espíritos, por suas revelações nos fazem conhecer o seu estado moral e isso, como eles dizem, com o objetivo de nos estimular ao bem, a fim de merecermos uma existência melhor.
Allan Kardec.